quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Uso da Linguagem na Religião


A entrevista abaixo foi feita em 1999 para a revista Eclesianet com o fonoaudiólogo Noélio Duarte sobre oratória eficaz e oratória manipuladora. O link original parece não funcionar mais, mas a matéria está aqui na íntegra. Não sei exatamente o que o Noélio Duarte quer dizer com “ação do Espírito Santo”, mas a entrevista é muito boa e mais atual que nunca.

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Que a fé vem pelo ouvir, todo crente sabe. Agora, o que nem todos percebem é que, da mesma forma que a voz pode ser usada para anunciar as Boas Novas da salvação, também é capaz de se tornar instrumento de manipulação. Basta uma tonalidade mais elevada aqui, uma frase chorada ali e pronto, lá se vão as defesas mentais do ouvinte embora.

Este uso mal-intencionado da voz humana encontra em Noélio Duarte um de seus mais ferrenhos adversários. Para ele, alguns pastores cozinham deliberadamente o cérebro de seus ouvintes com modulações de voz cuidadosamente selecionadas. Atingindo em cheio as emoções do público, fica fácil produzir manifestações atribuídas ao Espírito Santo, mas que não passam de comportamentos psíquicos. "O segredo é o som", revela o estudioso.

Noélio Duarte tem um currículo extenso. Fonoaudiólogo por formação, com especialização em terapia vocal e comunicação humana há mais de 20 anos, ele é pesquisador e leciona oratória e fisiologia da voz. Tem quatro livros publicados, sendo que o último, Você pode falar melhor (Juerp), está na quarta edição. Como consultor e conferencista, tem falado para platéias formadas por empresários, estudantes, profissionais liberais e pastores, todos interessados em aprender a falar bem, requisito fundamental neste mundo cada vez mais competitivo e exigente.

Baiano de Caravelas, seu interesse pela voz humana nasceu de maneira prosaica: seu pai era pastor e, volta e meia, pregava tanto que perdia a voz. Noélio decidiu, então, dedicar-se a uma especialidade que ajudasse as pessoas a não sofrer com problemas vocais. Evangélico, 45 anos de idade, casado e pai de duas filhas, Noélio prepara-se para o ministério pastoral - está prestes a concluir o curso de teologia no Seminário Batista do Sul, no Rio -, com o qual pretende unir o útil ao agradável: transmitir a mensagem da salvação de forma compreensível e capaz de convencer qualquer pecador a se arrepender. Foi com sua voz clara e bem treinada que ele deu esta entrevista à revista ECLÉSIA.


O que é falar bem?
Falar bem é expressar-se com inteligibilidade, fazendo com que o outro entenda aquilo que você está apresentando. Uma das definições da comunicação é "tornar o assunto comum". Falar bem é falar uma linguagem que seja comum a mim e ao outro. Às vezes, as pessoas confundem falar bem com enfeitar demais, abrilhantar a fala com termos rebuscados.


Então, é uma questão de identificação com o interlocutor?
Um dos elementos que usamos em oratória é a qualificação da pessoa com quem se está falando, já que cada um tem uma linguagem própria que rege sua vida. Se estou falando com você e descubro a sua formação, posso identificar-me. É a chamada "teoria do espelhamento pela palavra". Quando falo sua linguagem, torno-me seu amigo e, inconscientemente, você se torna atraído por mim. Eu desperto seu interesse. Isso é uma técnica. Em suma, falar bem é falar o que o outro precisa ouvir e fazê-lo entender o que eu preciso dizer.


Por que é tão importante aprender a falar bem?
Olha, falar, todo mundo fala. Mas será que todos convencem? Convencer é fazer com que o outro trabalhe com as suas idéias dentro de um critério em que todas as suas proposições sejam entendidas e, mais tarde, repetidas. Há uma busca frenética, hoje em dia, pelo falar bem. O índice de desemprego é muito alto. Mesmo pessoas de alta qualificação profissional têm tido muitas dificuldades para conseguir emprego. Elas precisam aprender a falar bem, o que, neste contexto, significa convencer o outro daquilo de que são capazes.


O bom orador já nasce feito ou qualquer pessoa pode aprender a falar corretamente?
O bom orador não nasce feito. Ao nascer, o cérebro de uma pessoa tem entre 10 e 12 bilhões de neurônios. Cada neurônio tem conexão com outros 10 mil. Isto permite ao cérebro ter 120 trilhões de conexões. Esta fantástica usina pode permitir a uma pessoa ganhar o Prêmio Nobel ou, simplesmente, manter-se analfabeta. Depende do estímulo. O cérebro, internamente, nada produz, a não ser a manutenção das funções orgânicas vitais. Na verdade, o cérebro é uma estrutura que precisa ser programada. A oratória é uma programação. Você se torna um bom orador na proporção em que tenha muitas informações na cabeça e seja capaz de verbalizá-las e passá-las para seu público. É inútil possuir muito conhecimento quando se é incapaz de trabalhar estas informações de forma verbalizada. E a fala é o canal para isso.


Por que muitas pessoas têm medo de falar em público?
Por medo do julgamento. Um grupo da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, mostrou, através de estudos, que um ser humano recebe nove repreensões para cada elogio. Isto gera uma auto-imagem deformada, numa condição de absoluta negatividade. É a chamada "programação negativa". Quando tem que falar, essa pessoa já entra achando que vai perder, até mesmo numa simples conversa. Então, o medo vem do conhecimento deformado que o indivíduo tem de si mesmo.

Na verdade, isto tem três origens. A primeira é o desconhecimento dos próprios potenciais. A segunda é o conceito negativo que a pessoa tem de si mesma. E a terceira é a ausência total da visão da possibilidade, das metas.


E quais são os maiores erros que o orador pode cometer?
É possível listar cinco características de um mau orador.

O primeiro é a desatualização. Uma pessoa desatualizada, que pensa ser suficiente aquilo que já possui, não lê, não busca novos conhecimentos, não percebe que a programação mundial está mudando a cada dia.

A segunda é a auto-suficiência. Aquele que pensa: "Eu me basto. Se quiser me ouvir, tudo bem. Senão, vá procurar outro."

Outra deficiência é não avaliar os potenciais vocais. Uma pessoa que nunca se ouviu, mesmo que seja através de uma fita de gravador, não tem a menor noção de quem ela é, não tem autocrítica. Por isso, fala baixo demais, fala rápido, berra etc.

Outro erro muito freqüente é não cuidar da voz. A voz também pode adoecer. Se não for cuidada, ela se torna doente e insuficiente. Há oradores que não cuidam do seu instrumento de trabalho, que é a voz.

E o quinto erro crasso, gravíssimo, é a recusa de mudar paradigmas pessoais. É não querer mudar sua própria visão.


Como prender a atenção do ouvinte?
Eu uso três princípios práticos.
O primeiro é o princípio da visibilidade. Antes de abrir a boca, é preciso contemplar o auditório, identificando-se com os ouvintes, fazendo uma saudação com o olhar. Eu não entendo alguns oradores que falam olhando para o chão, ou para o teto. Oratória é uma coisa de olhar, ela fascina pela visibilidade.

Há também a gestualidade. Os gestos fazem parte da oratória. Os gestos devem ser trabalhados entre o rosto e o tórax, pois as pessoas estão com o foco nos olhos e na boca de quem fala.

O terceiro princípio é o da comunicabilidade. É preciso explorar a palavra, o som da palavra e a linguagem do corpo. Os autores classificam a palavra como um elemento com pouco poder de persuasão. Apenas 7% do potencial de comunicação vêm da palavra. Agora, se você aliar a palavra ao som da palavra e à linguagem do corpo, seu potencial de comunicação será altíssimo.


Os pastores, em geral, falam bem?
Não. O apóstolo Paulo, escrevendo aos coríntios, disse que, se a voz não tiver um som certo, como será possível entendê-la? O que conta é o som. Salomão escreveu em Provérbios 18.20 que a vida e a morte estão no poder daquilo que se diz e como se diz. Durante muitos anos, os pastores entraram na escola da retórica, que é a parte estética da oratória, e se esqueceram de que o mundo mudou. A oratória tem que ser contextualizada. Hoje, entende-se que o bom orador é aquele que conversa, e não o que prega de uma maneira ortodoxa, arcaica.


É possível manipular as pessoas durante uma pregação usando recursos vocais?
Sem dúvida. É sabido que cerca de 95% do conteúdo total do cérebro trabalha em função da emoção, e o restante, em função do intelecto. O som da palavra é que aperta o gatilho para detonar a emoção ou a razão. Logo, se um orador pretende emocionar sua platéia, basta usar tons apelativos, emocionais, falar com aquela ênfase exagerada, gritar... A voz humana trabalha com faixas tonais, desde os tons graves, que deprimem, até os tons de ciclagem mais alta, que são capazes de agitar, trabalhar o emocional das pessoas. Este som da agitação descaracteriza o sentido intelectual da mensagem. Um indivíduo submetido a esse tipo de pregação perde todas as suas defesas. Quanto mais agudo o som, quanto maior a intensidade e o volume, mais indefesos ficam os ouvintes, principalmente se têm um nível cultural baixo. Aí se explica por que algumas igrejas vêm crescendo tanto. Infelizmente, alguns líderes usam isso com os piores objetivos.


Mas o senhor diria que isso é intencional?
Eu diria que há intenção. Freud disse que o ser humano tem dois campos de ação: a fuga da dor e a busca pelo prazer. Como é, então, que esses pastores conseguem manter o público? Falando o que ele quer ouvir. E como isso pode ser feito? Entrando na emoção, usando uma freqüência de dor. Aquelas orações lamurientas, impostadas: "Oh!, Senhor Deus, nós estamos aqui, nós somos fracos..." Esta é a freqüência que atinge aquele sujeito que está sofrendo.


Essas estratégias de manipulação são usadas até nas orações?
Infelizmente sim, e isto é extremamente grave, até mesmo passível de alguma ação por parte da liderança evangélica. Alguns fazem isso inconscientemente, numa atitude de copiar um modelo. A Igreja Universal, por exemplo, criou um modelo próprio. Antes dela, a Nova Vida também tinha criado o seu. As pessoas, então, copiaram estes modelos. Só que este tipo de oração dolorida, angustiada, tem sido usada na manutenção de um status quo, que é o do pregador que tem que gritar lá da frente para manter o público preso a ele através de uma faixa tonal.


Mas como diferenciar as manifestações com o objetivo de manipulação verbal daquelas que são, genuinamente, fruto da operação do Espírito Santo?
Vou responder citando um fato científico. Um psiquiatra canadense descobriu a chamada "epilepsia musicogênica". Ele conseguiu reproduzir em um grupo experimental - que nada tinha a ver com Deus ou com a Bíblia - as mesmas manifestações que alguns pastores de uma determinada igreja na Austrália conseguiam promover entre seus fiéis. Bastou reproduzir as freqüências tonais utilizadas. Esse estudioso, que inclusive era ateu, queria mostrar que certas manifestações não tinham relação com o Espírito Santo. O trabalho, com 53 casos documentados, foi enviado para a Organização Mundial de Saúde e criou muita celeuma. Muito do que essas pessoas andam fazendo por aí são manifestações psíquicas. Eu tenho profundo temor a Deus e creio na ação do Espírito Santo. Mas procuro ficar de olho aberto e diferenciar as coisas.


Essa manipulação também é usada na arrecadação de ofertas?
Mas é claro. Certa vez, eu fui a um culto com um amigo e vi que ele ficou emocionado, chorava, debatia-se e, a certa altura, perguntou-me se eu não sentia alguma coisa. "Rapaz, o Espírito Santo não está tocando em você? Você é um insensível", ele me disse. Então, falei para ele: "Olha só, o que aquela pessoa lá na frente está fazendo nada tem de Deus. Ele está manipulando, tanto é que você nem questionou quanto tinha no bolso." Ele meteu a mão no bolso, foi lá e deu R$ 50. Depois ele me disse que nunca imaginou que, um dia, seria capaz de dar R$ 50 numa igreja. Mas ele achou que foi movido pelo Espírito Santo.


E as músicas agitadas, as palmas, também podem ter um efeito manipulador?
Podem. A música agitada e as palmas ritmadas têm a capacidade de liberar as emoções primitivas. É por isso que os chamados hinos "tradicionais" têm sido tão criticados. As pessoas pensam que estão sentindo o fogo de Deus, mas estão, na realidade, vivenciando emoções primitivas. Qual é a primeira reação do ser humano quando nasce?


Chorar.
Exatamente. E logo depois vem o grito, certo? Então, como o cérebro está em busca deste estágio primitivo, o código da emoção é deflagrado. O indivíduo sente-se liberado para dar vazão a isso. Quem usa freqüências altas o tempo inteiro numa pregação está cozinhando o cérebro do auditório. Veja a música evangélica de hoje: ela tem sido mais usada para provocar emoções, e não como adoração. A carta aos romanos diz, no capítulo 12, que o culto deve ser racional e não emocional. A música não deve ser utilizada para manipular, para vender CD, para exaltação pessoal. Há gente que procura igrejas que têm música bonita. A música deve ser uma preparação espiritual para que o indivíduo adentre a presença de Deus. Só que, depois da música, tem que vir a Palavra de Deus. Se alguém quer crescer, tem que fazê-lo pela Palavra, e não pela música _ até porque muitas letras de músicas que estão por aí são extremamente carentes. Como poeta, acho algumas dessas composições terríveis. Certa ocasião, no nosso grupo de alunos do seminário, analisamos o conteúdo dessas músicas, frase por frase. Olha, não sobrou nada ou melhor, só sobrou o "amém".


Seu trabalho inclui elementos da neurolingüística. Como o senhor a define?
A neurolingüística é uma ciência que estuda o comportamento do cérebro diante de situações imediatas, isto é, como o cérebro reage diante de situações novas, e como você pode dimensionar isto para seu próprio crescimento, e não para o sofrimento.


Não é uma forma de humanismo?
Não, se eu a utilizar de uma forma coerente. Jesus Cristo disse que veio trazer vida em abundância. Esta vida abundante inclui vida social, emocional, física, econômica, familiar. O apóstolo Paulo usou a neurolingüística quando disse: "Toda a lei resume-se em um só mandamento amar o próximo como a si mesmo." Jesus Cristo também já havia dito que os mandamentos resumiam-se a amar o próximo como a si mesmo. Amar-se é muito importante. A neurolingüística ajuda o indivíduo a formular projetos, é uma forma de auto-ajuda. Ela pode ser usada na vida espiritual, na busca por projetos, metas, atitudes que favoreçam o crescimento espiritual.


Mas muitos líderes evangélicos combatem a neurolingüística por considerá-la anti-cristã.
Mas a maioria da liderança evangélica nunca se deu ao trabalho de ler obra alguma sobre o tema. É meio naquela base do "não li e não gostei". É um preconceito causado pelo desconhecimento. É uma pena que não se abram para o conhecimento e para a mudança desses paradigmas internos. Dei de presente a um pastor um livro sobre neurolinguística. Ele agradeceu e recusou, dizendo que aquilo era "literatura satânica". Há preconceito. Eu trabalho com diversos grupos, mas, de cada dez convites que recebo, apenas dois são de organizações evangélicas, inclusive congressos de pastores.


E esses pastores concordam quando o senhor fala em manipulação pela voz?
Os pastores que me ouvem estão em busca de conhecimentos técnicos sobre como respirar corretamente, como articular melhor as palavras, como encarar o público. Na maioria das vezes, interessam-se apenas pela estética da voz. É como se me dissessem: "Olha, nós queremos técnica, não nos venha com aquelas teorias." Agora, quando eu posso, abro um espaço para falar em manipulação pela voz por entender que esta é uma questão extremamente grave.


http://www.eclesianet.com.br/web/vinde/anteriores/dezembro_99_entrevista.htm